quinta-feira, 3 de março de 2011

O BLUES E UMA GARGALHADA - PARTE II




PARTE II


“Sólo hay ideas encarnadas. Solo
hay verbo hecho carne.”
Gombrowicz


Canto XXVI


O rio está além do horizonte
e do próprio precipício,
cobra que desliza em torrentes para o oceano.
Mas o rio está morrendo
e poluído,perde a sua graça
e o riso maroto de mulher feliz
mostrando uma boca desdentada,
face do ocaso e ilusão.
Suas águas escuras
encobrem a morte opaca perais
e,enquanto pedras afloram como ilhas desoladas
ao lado de baronesas e matéria decomposta ,
os peixes abandonam os enlouquecidos cardu-
mes
num vôo suicida e solitário,
natureza torta.


Canto XXVII

O rio tem lagos e cachoeiras
poços e artifícios
além dos mortos sem nome e documentos.
Ele percorre sempre o mesmo caminho
tem meandros invisíveis
além de palácios subterrâneos
e seres não imaginados:
princesas e rainhas
além do espelho de corcéis alados
e carros enviesados
como o claro enigma drummoniano
cão mijando no muro de areia
dividindo o visível e o não
enquanto impávido arcturus observa
sem lentes de contato
o pouso da ave
a migração dos cardumes
além do espaço e a chave do indecifrado.


Canto XXVIII

A tempestade não assusta o espírito do rio
que desce mar revoltado em cataratas de lama
levando esperanças, móveis e vidas
além de gente de destino incerto
roupas em desalinho
marmitas sem comida
surpresas que arrebitam os olhos
e estreitam o coração,
mas depois do caos e da imperfeita explosão
tudo volta à sua rotina
há calma e indiferença nas pedras que emergem em
ilhas
e, como se nada tivesse acontecido
o vento breve veste capa de calmaria
pousa no ombro do poeta
ou assanha o cabelo do menino.

Canto XXIX

Os ditadores não tomam banho de rio
nem pescam nos mares da realidade
vivendo de água, vinho e melancolia.
Eles desconhecem solenes o poeta
e os seus versos caóticos
também desprezam a voz do povo
que faz figa nas portas dos palácios e motéis
mas freqüenta feiras livres e supermercados
as filas dos hospitais
e vai aos hospícios sob os auspícios da lei
ou da beneficência portuguesa.
Os ditadores são onívoros e onipotentes
e têm um medo latrinal de ler jornal
ou de ir até os jardins suspensos do bar
ver os navegantes que viajam em canoas
ou jangadas aproximadas.

Canto XXX

O rio margeia a cidade dos meus sonhos
e rompe caminhos diagonais num ritmo indolor.
Ele tem braços e pernas
além de um corpo de espumas
que emerge em nuvens do ventre da terra
e se ilumina azul como a lua pálida
que avança nos caminhos da noite
dividindo as trevas e o silêncio
murmúrios da correnteza
ou desce em precipícios
que formam cachoeiras e cavernas
onde vivem deusas e rainhas encantadas
que dão as cores à paisagem
ou tecem miragens que confundem os navegantes
ou pescadores imaginosos que vivem entre sereias
peixes nebulosos e luzes inutilmente atravessadas.


Canto XXXI

O rio não é o riso que se transforma numa gargalhada
e nem tem o blues esquecido do Tenessee
campos onde o poeta não vai
nem pode cultivar
pois lavra palavras sobre palavras
num tempo agreste e difícil
como o aborto do ventre da terra
e dos frutos indecifrados
que não podem ser colhidos.
O poeta não tem esperança
mas não transforma a vida num áspero desespero
que desce ocasional das águas paradas
em imagens de cobras e largartos
serpentes que flutuam ao sabor do vento
como as imagens da tevê
ou o filme que não se vê.
O poeta tira a camisa
o chapéu de palha amarelecido pelo tempo
e se despe de ironia para fazer versos
e quer ser sublime
falar de amor
ou do orgasmo do tempo em você.



Canto XXXII

Tridimensional
aparece na tela do computador
o desenho deste rio
que desce noturno e frio.
Com puta dor
o poeta ri
e faz da gargalhada o desvio da risada
que toma o corpo da sala
invade a tela e salva tudo
como um programa laranja
de sol, rede e bubuia
como as férias anuais
que correm numa seqüência cinematográfica
em cortes e montagens
até porque a vida é sempre uma pequena bobagem
que nunca escapa ao amor e ao sonho
nem as nuançes do amanhã indecifrado.

Canto XXXIII

Meu rio não é de janeiro
nem chega a fevereiro, março ou abril
e abre suas asas sobre nós
em vôos libertários
como a ave que foge da gaiola dourada
para conquistar novo espaço e o céu do acaso
com turbulentas águias ou mortais aviões
além das muitas invenções
sustos e incertezas ocasionais
que passeiam como visagens pelo corpo da casa
e assustam os desavisados transeuntes
que trafegam esperanças matutinas nos bolsos
e levam amores entre os dedos
como indecisos navegantes entre o sim e o não.

Canto XXXIV

O rio tem mananciais de vinho e leite
a vaca dourada dos presépios
e a sagrada promessa dos indus
além do néctar do amor em você
cujos cabelos descem em cachoeiras
umedecidos de sonhos e amanhãs.
Este rio tem sempre algo mais
além da poesia do trovador e do acaso
num sorteio de versos e rimas
promessa virtual
sem pés e calçados
como alguém que dança o blues
e ouve Alberta Hunter
uma caçadora dos deuses
e que viveu em canções
e se desfez em rios de música
numa terceira dimensão
com uma tempestade de vinho , leite
e por certo também de amor.

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