quinta-feira, 3 de março de 2011

O BLUES E UMA GARGALHADA - PARTE I





Kleber Torres


PARTE I

O VALOR DA POESIA ESTÁ NO SEU PARADOXO. O QUE A POESIA DIZ É AQUILO QUE NÃO É DITO" Rubem Fonseca


Canto I

O sono não acabou
e o vizinho do poeta joga na loto
dezenas semanais
cheias de estudos astrológicos
ou extraídas da lógica e do computador
que brinca com os dados como Mallarmé
através de vôos obscuros ao fundo do peito.

Na madrugada
ficam os latidos dos cachorros
os passos que apavoram
ou imagens acadêmicas
cheias de malícia e cadência
no ritmo e malabarismo da vida
ou dos passos da mulher querida.

Canto II

A lua,
não é uma gorda bola de queijo
cheia de mirabolantes crateras
ou outros incertos etcéteras,
nem tem o cavalo bravio de São Jorge
suado, exaurido de tantos combates.
Cheia,
ela me ilumina com olhos de menina
num vôo lírico
e de novas imagens visuais:
luzes que acendem e apagam
miragens ou reflexos
pois a lua não tem acento circunflexo
nem mares circunspectos
e nem inauditos navegantes.


Canto III


O poeta cavalga
o rabo do cometa e do foguete
extrapolando sensações dionisíacas:
miragens nas montanhas russas
e cigarros entre os dedos.
O poeta tem a faca e o queixo
o sabor de sal
o sol de amar a lina
com o coração fatiado em dúvidas
entre sereias, abruptas ondas e o surf.
Música punk.


Canto IV

A terra é azul
mas o espaço anódino me da vertigens
e não redime a poesia
que desce sem asas
além das nuvens azuis.

Ao poeta,
cabem os pássaros
o pouso dos astros incertos
ou a opção insana dos náufragos.


Canto V

O dicionário repousa na mesa
enquanto o poeta joga ifá
e nem sabe o que comer amanhã.

As palavras,
intactas e não ditas
não suam, não sonham e não ecoam
perdidas
mas têm o seu sal e ardósia
o sabor neutro de carne e sangue
transformando-se em coisas e versos
depois
ganham cor e as ruas
compõem os cartazes e os letreiros
além das letras dos samba enredos
ou das canções de amor
que escapam as regras matemáticas
e as leis não cumpridas da física.


Canto VI

Para o velho Osvald,
pai de Serafim Ponte
Grande e muitos ou-
tros.



O poeta não é um homem sem profissão
e nem vive sob as ordens tradicionais da mamãe.
A ele, compete a luta cotidiana
o domínio da palavra e o amor.
Também é de sua atribuição
o destino dos sonhos e metáforas
além de cantar o baby blues
entornando gargalhadas no concreto
acompanhadas de doces cambalhotas
e cestos indiscretos.

Canto VII

O poeta questiona as notícias dos jornais
e o dia a dia das palavras
enquanto os papéis amarrotados
dormem no canto da casa
palácio de rude engenharia
construção de enigmática
com uma geografia cheia de plenilúnios
ou planos invertebrados.
O poeta também questiona os políticos
a polícia e os malandros gingando na rua
sem atentar para as chapas brancas ou frias
cuidando apenas dos lances
rápidos descuidos:
questão de geometria.


Canto VIII

A poesia invadiu as praias
os bares ganhando os becos e esquinas.
Há também poesia nos olhos das meninas
nos carros e garrafas de coca-cola
ou mesmo atravessando a ponte
sem letreiros de néon
e nem imagens digitais.
Assim,
indecifrado, o poema se veste de azul
desce as escadas da casa
e sem armadilhas, se integra simplório
ao coração vadio do povo.

Canto IX

A rede balança casual e efêmera
deixando no ar o contorno do corpo imóvel
adormecido
que balança entre o sonho e o delírio.

Num outro plano
fica o desenho do m da tua mão
além do tato do cego
grito aberto do gago
e dois corcéis que suplantam as nuvens
que se desfazem em lágrimas e magias
como o pulsar inquieto do teu coração
que bate miúdo e descompassado
sobrepassando o rock na vitrola
o filme mudo que repousa na moviola
tudo em 24 fotogramas por segundo
o hiato do movimento e do silêncio profundo.


Canto X

Não vou embora prá pássagarda
e nem outras terras que desconheço
pois não quero ter amigos reis
e nem mulheres randômicas:
apostas casuais.
Assim e assado, sigo a minha rota
para construir um novo horizonte
sem pedras no meio do caminho
suprimindo os obstáculos e muros indecifrados.
Com estas mãos,
cultivarei o ventre da terra
e construirei um novo artifício
que pode ser a ponte entre o sim e o não
fértil em interrogações
como os gritos no subterrâneo da rua
onde passeiam sombras e luares encadernados.


Canto XI


Todos os caminhos são iguais
e apontam a rota do céu e do mar
que sintetizam o porto
o contorno do teu andar
sutil passando vegetal na avenida
e transcendendo o mistério de Deus
com uma ponta de loucura na agulha
bússola louca
que mostra todas as estações
o tempo de ir, vir e semear


Canto XII


A taça navega surpresas
e revela o tangencial corpo da casa
além dos moldes de gesso e cristal,
mas o poema está na mesa
indiferente
esquecido junto à insólita caneta
que vadia entre o cinzeiro e o isqueiro
pronto
sem asas dialéticas
sem intenção
no esdrúxulo caminho entre a magia e a invenção.

Canto XIII


No vídeo :
a mulher de fio-dental
que se sobrepõe à morte transparente
entre fumaças e adeuses
sem nenhum referencial.
Como tudo é notícia
fica a interrogação após o foguete que
explode
seguido de uma novela sem fim
uma teia de aranha digital
com palavras sobre palavras
outras lavras após a colheita e a safra
sem o enredo da minha ou tua estória.


Canto XIV

O poeta se libertou da paranóia
abdicando do relativo poder e da glória.
Ele não guia carros , nem animais
e não aperta os botões escatológicos
que semeiam a morte nuclear.
O poeta tem outra função:
leva cinzas na manga na camisa
e dedos ágeis para afagar os teus seios
que explodem no contorno da blusa
conjugando o verbo amar.


Canto XV

O poeta joga a inspiração na cesta
mas não abre mão da competência
nem da ciência da invenção.
Ele acredita no povo e no espelho náutico
que despreza a semi e outras óticas
ou a linguagem circunstancial.
O poeta também despreza a maldição
e os mecenas que bebem uísque e cheiram coca
porque tem outros instrumentos para a vida
armado de metralhadoras e sonhos
que diáfanos se abrem a cada manhã.
O poeta vê lirismo no passeio
e nas mãos abertas para o afago
enquanto passeia na avenida.

Canto XVI

A gargalhada do bêbado
corta a avenida matando o silêncio
enchendo o peito de medo e ironia
com cheiro de éter e vinho.
Mas a gargalhada esdrúxula
agride ao poeta sufoca o transeunte
exala terror e incerteza
enquanto o sol passeia no verão
e ilumina o corpo da ninfeta dourada
que se desdobra em sonhos de amor e poesia.

Canto XVII

Este não é um baby blue
nem um blue ship
alheio ao aceno circunspecto dos doutores
com fardas talhadas em gesso e metal.
Eles carregam a sutileza dos robôs
e no seu mundo inexistem crianças azuis
o que se sobrepõe ao negro amor
que vai além de rumor branco da sala
ou da bandeira drapeada
rota nas Malvinas
além do celeste time uruguaio
enlutado nas câmaras de tortura,
onde prevalecem o silêncio e o medo abstratos:
a canção que ficou na ladeira da preguiça onde enguiça o carro do poeta
descortinando o mar e os vestígios do sol
poente ao lado de uma lua crescente,
também fictícia.



Canto XVIII

O poema não é um mero panfleto
e nem o libelo do advogado
cheio da frases de cetim
com alho, maionese e molho tártaro.
O poema tem o seu apreço
espaço e mesmo um céu de aço
onde plúmbeas nuvens prenunciam o temporal.
Ele não pretende ser a obra prima
e nem a prima da dona da ópera
mas um circuito integrado de magia
com enredos escusos
macumba nos cabelos esvoaçantes
expostos à luz e à chuva,
sempre sob o signo das estrelas.


Canto XIX

O poeta rasgou o seu plano de vôo
e faz acrobacias de cristal
diante dos olhos da mulher amada.
Ele tira a camisa
e de peito aberto
secciona as vértebras e um certo coração
que bate em ritmo de pandeiro
sempre apto para incursões noturnas
com artes e manhas domingueiras.


Canto XX

Há poesia nas prateleiras dos mercados
mesmo com preços remarcados e sem concessões,
mas os olhos hesitam entre o sim e o não
indeciso entre o omo e o vinho,
enquanto o pão descansa no balcão
entre ovos, leite e café,
além dos guardanapos que voam imprecisos
no rumo desconcertante do chão
onde jazem pontas de cigarro
cuspe e catarro
pés aleijados e sem sandálias
ou ainda o menino que corre sem direção
fazendo subterfúgios e choros de mentira:
síntese de brinquedo e diversão.
No mais,
não há alegria nos freezers
cemitérios de peixes e moluscos congelados,enquanto no canto,
sem critério, vasos etruscos apenas vigiam o caos
entre serpentes e naftalinas.

Canto XXI

Não canto a província
nem o seu caos cotidiano,
mas o mundo, suas cores e eternos contrastes:
a fome universal nos bancos dos jardins
as dores das manchetes de jornais
e a lágrima inútil dos oprimidos.
Sei que existem poetas na prisão
virgens estupradas em silêncio
e olhos draconianos que a tudo vigiam
além dos mares dantes navegados
por cardumes de submarinos
que fazem do apocalipse uma festa
e espalham medo sem contemplação.


Canto XXII

Semeio as flores do bem e do mal
no jardim, quintal ou no vaso do apartamento
com seu sanitário de espelhos
e silêncio nas antessalas.
Semeio também este lirismo
que desce no peito camuflado
imaginando-se ave
e tentando vôos agrestes e obtusos
além do desenho e do entalhe imaginários
que se desfazem no contraste do tempo
indiferente ao lusco-fusco da sala
e à estrela bailarina que cruza o céu noturno
transbordante em sonhos e madrugadas.

Canto XXIII

Orion não esconde e nem omite sua espada
nem a capa cheia de mistérios
entre estrelas ilustres
bordada de sóis e cometas.
Caçador, ele vigia aos teus e meus olhos
no encontro fortuito do dia
numa gênese de amor e segredos
que transitam na avenida entre a chuva e o calor,
mas o seu cinto triestrelar revela:
além das marias três
há o verso que não morre
astronomias e interrogações.


Canto XXIV


Depois do abracadabra,
a alquimia da palavra
o verso solto na parede
e o homem inerte no passeio
onde convivem o maço vazio de cigarros
e os despojos répteis do bêbado.
O chão apocalíptico desvenda os restos de pipoca
vestígios de vômito e dos jornais
manchetes mortas
além das notícias de guerra e desamor
confete e serpentinas
cerveja em lata
mostrando que o mundo é sem nexo e sentido
e antecede à coleta de lixo,
sem nenhuma magia
sem cores e obnubilações.

Canto XXV

O ton-ton macoute morreu execrado
com a cabeça espetada em alfinetes
- vodu letal
de metálica tristeza -
um banzo diferente:
mistério de mar e ilhas abandonadas
aos náufragos e à vida.
O ton-ton macoute morreu
e um riso de hiena se escancarou na sua face
numa elucubração de mortes e tortura
além dos sonhos do passado
pesadelos do morre sem vela
num cemitério atapetado de tumbas sem cruzes
ou um oceano de mortos anônimos e sem rosto
que desapareceram na neblina numa terra sem
inverno.

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