quinta-feira, 3 de março de 2011

O BLUES E UMA GARGALHADA - PARTE I





Kleber Torres


PARTE I

O VALOR DA POESIA ESTÁ NO SEU PARADOXO. O QUE A POESIA DIZ É AQUILO QUE NÃO É DITO" Rubem Fonseca


Canto I

O sono não acabou
e o vizinho do poeta joga na loto
dezenas semanais
cheias de estudos astrológicos
ou extraídas da lógica e do computador
que brinca com os dados como Mallarmé
através de vôos obscuros ao fundo do peito.

Na madrugada
ficam os latidos dos cachorros
os passos que apavoram
ou imagens acadêmicas
cheias de malícia e cadência
no ritmo e malabarismo da vida
ou dos passos da mulher querida.

Canto II

A lua,
não é uma gorda bola de queijo
cheia de mirabolantes crateras
ou outros incertos etcéteras,
nem tem o cavalo bravio de São Jorge
suado, exaurido de tantos combates.
Cheia,
ela me ilumina com olhos de menina
num vôo lírico
e de novas imagens visuais:
luzes que acendem e apagam
miragens ou reflexos
pois a lua não tem acento circunflexo
nem mares circunspectos
e nem inauditos navegantes.


Canto III


O poeta cavalga
o rabo do cometa e do foguete
extrapolando sensações dionisíacas:
miragens nas montanhas russas
e cigarros entre os dedos.
O poeta tem a faca e o queixo
o sabor de sal
o sol de amar a lina
com o coração fatiado em dúvidas
entre sereias, abruptas ondas e o surf.
Música punk.


Canto IV

A terra é azul
mas o espaço anódino me da vertigens
e não redime a poesia
que desce sem asas
além das nuvens azuis.

Ao poeta,
cabem os pássaros
o pouso dos astros incertos
ou a opção insana dos náufragos.


Canto V

O dicionário repousa na mesa
enquanto o poeta joga ifá
e nem sabe o que comer amanhã.

As palavras,
intactas e não ditas
não suam, não sonham e não ecoam
perdidas
mas têm o seu sal e ardósia
o sabor neutro de carne e sangue
transformando-se em coisas e versos
depois
ganham cor e as ruas
compõem os cartazes e os letreiros
além das letras dos samba enredos
ou das canções de amor
que escapam as regras matemáticas
e as leis não cumpridas da física.


Canto VI

Para o velho Osvald,
pai de Serafim Ponte
Grande e muitos ou-
tros.



O poeta não é um homem sem profissão
e nem vive sob as ordens tradicionais da mamãe.
A ele, compete a luta cotidiana
o domínio da palavra e o amor.
Também é de sua atribuição
o destino dos sonhos e metáforas
além de cantar o baby blues
entornando gargalhadas no concreto
acompanhadas de doces cambalhotas
e cestos indiscretos.

Canto VII

O poeta questiona as notícias dos jornais
e o dia a dia das palavras
enquanto os papéis amarrotados
dormem no canto da casa
palácio de rude engenharia
construção de enigmática
com uma geografia cheia de plenilúnios
ou planos invertebrados.
O poeta também questiona os políticos
a polícia e os malandros gingando na rua
sem atentar para as chapas brancas ou frias
cuidando apenas dos lances
rápidos descuidos:
questão de geometria.


Canto VIII

A poesia invadiu as praias
os bares ganhando os becos e esquinas.
Há também poesia nos olhos das meninas
nos carros e garrafas de coca-cola
ou mesmo atravessando a ponte
sem letreiros de néon
e nem imagens digitais.
Assim,
indecifrado, o poema se veste de azul
desce as escadas da casa
e sem armadilhas, se integra simplório
ao coração vadio do povo.

Canto IX

A rede balança casual e efêmera
deixando no ar o contorno do corpo imóvel
adormecido
que balança entre o sonho e o delírio.

Num outro plano
fica o desenho do m da tua mão
além do tato do cego
grito aberto do gago
e dois corcéis que suplantam as nuvens
que se desfazem em lágrimas e magias
como o pulsar inquieto do teu coração
que bate miúdo e descompassado
sobrepassando o rock na vitrola
o filme mudo que repousa na moviola
tudo em 24 fotogramas por segundo
o hiato do movimento e do silêncio profundo.


Canto X

Não vou embora prá pássagarda
e nem outras terras que desconheço
pois não quero ter amigos reis
e nem mulheres randômicas:
apostas casuais.
Assim e assado, sigo a minha rota
para construir um novo horizonte
sem pedras no meio do caminho
suprimindo os obstáculos e muros indecifrados.
Com estas mãos,
cultivarei o ventre da terra
e construirei um novo artifício
que pode ser a ponte entre o sim e o não
fértil em interrogações
como os gritos no subterrâneo da rua
onde passeiam sombras e luares encadernados.


Canto XI


Todos os caminhos são iguais
e apontam a rota do céu e do mar
que sintetizam o porto
o contorno do teu andar
sutil passando vegetal na avenida
e transcendendo o mistério de Deus
com uma ponta de loucura na agulha
bússola louca
que mostra todas as estações
o tempo de ir, vir e semear


Canto XII


A taça navega surpresas
e revela o tangencial corpo da casa
além dos moldes de gesso e cristal,
mas o poema está na mesa
indiferente
esquecido junto à insólita caneta
que vadia entre o cinzeiro e o isqueiro
pronto
sem asas dialéticas
sem intenção
no esdrúxulo caminho entre a magia e a invenção.

Canto XIII


No vídeo :
a mulher de fio-dental
que se sobrepõe à morte transparente
entre fumaças e adeuses
sem nenhum referencial.
Como tudo é notícia
fica a interrogação após o foguete que
explode
seguido de uma novela sem fim
uma teia de aranha digital
com palavras sobre palavras
outras lavras após a colheita e a safra
sem o enredo da minha ou tua estória.


Canto XIV

O poeta se libertou da paranóia
abdicando do relativo poder e da glória.
Ele não guia carros , nem animais
e não aperta os botões escatológicos
que semeiam a morte nuclear.
O poeta tem outra função:
leva cinzas na manga na camisa
e dedos ágeis para afagar os teus seios
que explodem no contorno da blusa
conjugando o verbo amar.


Canto XV

O poeta joga a inspiração na cesta
mas não abre mão da competência
nem da ciência da invenção.
Ele acredita no povo e no espelho náutico
que despreza a semi e outras óticas
ou a linguagem circunstancial.
O poeta também despreza a maldição
e os mecenas que bebem uísque e cheiram coca
porque tem outros instrumentos para a vida
armado de metralhadoras e sonhos
que diáfanos se abrem a cada manhã.
O poeta vê lirismo no passeio
e nas mãos abertas para o afago
enquanto passeia na avenida.

Canto XVI

A gargalhada do bêbado
corta a avenida matando o silêncio
enchendo o peito de medo e ironia
com cheiro de éter e vinho.
Mas a gargalhada esdrúxula
agride ao poeta sufoca o transeunte
exala terror e incerteza
enquanto o sol passeia no verão
e ilumina o corpo da ninfeta dourada
que se desdobra em sonhos de amor e poesia.

Canto XVII

Este não é um baby blue
nem um blue ship
alheio ao aceno circunspecto dos doutores
com fardas talhadas em gesso e metal.
Eles carregam a sutileza dos robôs
e no seu mundo inexistem crianças azuis
o que se sobrepõe ao negro amor
que vai além de rumor branco da sala
ou da bandeira drapeada
rota nas Malvinas
além do celeste time uruguaio
enlutado nas câmaras de tortura,
onde prevalecem o silêncio e o medo abstratos:
a canção que ficou na ladeira da preguiça onde enguiça o carro do poeta
descortinando o mar e os vestígios do sol
poente ao lado de uma lua crescente,
também fictícia.



Canto XVIII

O poema não é um mero panfleto
e nem o libelo do advogado
cheio da frases de cetim
com alho, maionese e molho tártaro.
O poema tem o seu apreço
espaço e mesmo um céu de aço
onde plúmbeas nuvens prenunciam o temporal.
Ele não pretende ser a obra prima
e nem a prima da dona da ópera
mas um circuito integrado de magia
com enredos escusos
macumba nos cabelos esvoaçantes
expostos à luz e à chuva,
sempre sob o signo das estrelas.


Canto XIX

O poeta rasgou o seu plano de vôo
e faz acrobacias de cristal
diante dos olhos da mulher amada.
Ele tira a camisa
e de peito aberto
secciona as vértebras e um certo coração
que bate em ritmo de pandeiro
sempre apto para incursões noturnas
com artes e manhas domingueiras.


Canto XX

Há poesia nas prateleiras dos mercados
mesmo com preços remarcados e sem concessões,
mas os olhos hesitam entre o sim e o não
indeciso entre o omo e o vinho,
enquanto o pão descansa no balcão
entre ovos, leite e café,
além dos guardanapos que voam imprecisos
no rumo desconcertante do chão
onde jazem pontas de cigarro
cuspe e catarro
pés aleijados e sem sandálias
ou ainda o menino que corre sem direção
fazendo subterfúgios e choros de mentira:
síntese de brinquedo e diversão.
No mais,
não há alegria nos freezers
cemitérios de peixes e moluscos congelados,enquanto no canto,
sem critério, vasos etruscos apenas vigiam o caos
entre serpentes e naftalinas.

Canto XXI

Não canto a província
nem o seu caos cotidiano,
mas o mundo, suas cores e eternos contrastes:
a fome universal nos bancos dos jardins
as dores das manchetes de jornais
e a lágrima inútil dos oprimidos.
Sei que existem poetas na prisão
virgens estupradas em silêncio
e olhos draconianos que a tudo vigiam
além dos mares dantes navegados
por cardumes de submarinos
que fazem do apocalipse uma festa
e espalham medo sem contemplação.


Canto XXII

Semeio as flores do bem e do mal
no jardim, quintal ou no vaso do apartamento
com seu sanitário de espelhos
e silêncio nas antessalas.
Semeio também este lirismo
que desce no peito camuflado
imaginando-se ave
e tentando vôos agrestes e obtusos
além do desenho e do entalhe imaginários
que se desfazem no contraste do tempo
indiferente ao lusco-fusco da sala
e à estrela bailarina que cruza o céu noturno
transbordante em sonhos e madrugadas.

Canto XXIII

Orion não esconde e nem omite sua espada
nem a capa cheia de mistérios
entre estrelas ilustres
bordada de sóis e cometas.
Caçador, ele vigia aos teus e meus olhos
no encontro fortuito do dia
numa gênese de amor e segredos
que transitam na avenida entre a chuva e o calor,
mas o seu cinto triestrelar revela:
além das marias três
há o verso que não morre
astronomias e interrogações.


Canto XXIV


Depois do abracadabra,
a alquimia da palavra
o verso solto na parede
e o homem inerte no passeio
onde convivem o maço vazio de cigarros
e os despojos répteis do bêbado.
O chão apocalíptico desvenda os restos de pipoca
vestígios de vômito e dos jornais
manchetes mortas
além das notícias de guerra e desamor
confete e serpentinas
cerveja em lata
mostrando que o mundo é sem nexo e sentido
e antecede à coleta de lixo,
sem nenhuma magia
sem cores e obnubilações.

Canto XXV

O ton-ton macoute morreu execrado
com a cabeça espetada em alfinetes
- vodu letal
de metálica tristeza -
um banzo diferente:
mistério de mar e ilhas abandonadas
aos náufragos e à vida.
O ton-ton macoute morreu
e um riso de hiena se escancarou na sua face
numa elucubração de mortes e tortura
além dos sonhos do passado
pesadelos do morre sem vela
num cemitério atapetado de tumbas sem cruzes
ou um oceano de mortos anônimos e sem rosto
que desapareceram na neblina numa terra sem
inverno.

O BLUES E UMA GARGALHADA - PARTE II




PARTE II


“Sólo hay ideas encarnadas. Solo
hay verbo hecho carne.”
Gombrowicz


Canto XXVI


O rio está além do horizonte
e do próprio precipício,
cobra que desliza em torrentes para o oceano.
Mas o rio está morrendo
e poluído,perde a sua graça
e o riso maroto de mulher feliz
mostrando uma boca desdentada,
face do ocaso e ilusão.
Suas águas escuras
encobrem a morte opaca perais
e,enquanto pedras afloram como ilhas desoladas
ao lado de baronesas e matéria decomposta ,
os peixes abandonam os enlouquecidos cardu-
mes
num vôo suicida e solitário,
natureza torta.


Canto XXVII

O rio tem lagos e cachoeiras
poços e artifícios
além dos mortos sem nome e documentos.
Ele percorre sempre o mesmo caminho
tem meandros invisíveis
além de palácios subterrâneos
e seres não imaginados:
princesas e rainhas
além do espelho de corcéis alados
e carros enviesados
como o claro enigma drummoniano
cão mijando no muro de areia
dividindo o visível e o não
enquanto impávido arcturus observa
sem lentes de contato
o pouso da ave
a migração dos cardumes
além do espaço e a chave do indecifrado.


Canto XXVIII

A tempestade não assusta o espírito do rio
que desce mar revoltado em cataratas de lama
levando esperanças, móveis e vidas
além de gente de destino incerto
roupas em desalinho
marmitas sem comida
surpresas que arrebitam os olhos
e estreitam o coração,
mas depois do caos e da imperfeita explosão
tudo volta à sua rotina
há calma e indiferença nas pedras que emergem em
ilhas
e, como se nada tivesse acontecido
o vento breve veste capa de calmaria
pousa no ombro do poeta
ou assanha o cabelo do menino.

Canto XXIX

Os ditadores não tomam banho de rio
nem pescam nos mares da realidade
vivendo de água, vinho e melancolia.
Eles desconhecem solenes o poeta
e os seus versos caóticos
também desprezam a voz do povo
que faz figa nas portas dos palácios e motéis
mas freqüenta feiras livres e supermercados
as filas dos hospitais
e vai aos hospícios sob os auspícios da lei
ou da beneficência portuguesa.
Os ditadores são onívoros e onipotentes
e têm um medo latrinal de ler jornal
ou de ir até os jardins suspensos do bar
ver os navegantes que viajam em canoas
ou jangadas aproximadas.

Canto XXX

O rio margeia a cidade dos meus sonhos
e rompe caminhos diagonais num ritmo indolor.
Ele tem braços e pernas
além de um corpo de espumas
que emerge em nuvens do ventre da terra
e se ilumina azul como a lua pálida
que avança nos caminhos da noite
dividindo as trevas e o silêncio
murmúrios da correnteza
ou desce em precipícios
que formam cachoeiras e cavernas
onde vivem deusas e rainhas encantadas
que dão as cores à paisagem
ou tecem miragens que confundem os navegantes
ou pescadores imaginosos que vivem entre sereias
peixes nebulosos e luzes inutilmente atravessadas.


Canto XXXI

O rio não é o riso que se transforma numa gargalhada
e nem tem o blues esquecido do Tenessee
campos onde o poeta não vai
nem pode cultivar
pois lavra palavras sobre palavras
num tempo agreste e difícil
como o aborto do ventre da terra
e dos frutos indecifrados
que não podem ser colhidos.
O poeta não tem esperança
mas não transforma a vida num áspero desespero
que desce ocasional das águas paradas
em imagens de cobras e largartos
serpentes que flutuam ao sabor do vento
como as imagens da tevê
ou o filme que não se vê.
O poeta tira a camisa
o chapéu de palha amarelecido pelo tempo
e se despe de ironia para fazer versos
e quer ser sublime
falar de amor
ou do orgasmo do tempo em você.



Canto XXXII

Tridimensional
aparece na tela do computador
o desenho deste rio
que desce noturno e frio.
Com puta dor
o poeta ri
e faz da gargalhada o desvio da risada
que toma o corpo da sala
invade a tela e salva tudo
como um programa laranja
de sol, rede e bubuia
como as férias anuais
que correm numa seqüência cinematográfica
em cortes e montagens
até porque a vida é sempre uma pequena bobagem
que nunca escapa ao amor e ao sonho
nem as nuançes do amanhã indecifrado.

Canto XXXIII

Meu rio não é de janeiro
nem chega a fevereiro, março ou abril
e abre suas asas sobre nós
em vôos libertários
como a ave que foge da gaiola dourada
para conquistar novo espaço e o céu do acaso
com turbulentas águias ou mortais aviões
além das muitas invenções
sustos e incertezas ocasionais
que passeiam como visagens pelo corpo da casa
e assustam os desavisados transeuntes
que trafegam esperanças matutinas nos bolsos
e levam amores entre os dedos
como indecisos navegantes entre o sim e o não.

Canto XXXIV

O rio tem mananciais de vinho e leite
a vaca dourada dos presépios
e a sagrada promessa dos indus
além do néctar do amor em você
cujos cabelos descem em cachoeiras
umedecidos de sonhos e amanhãs.
Este rio tem sempre algo mais
além da poesia do trovador e do acaso
num sorteio de versos e rimas
promessa virtual
sem pés e calçados
como alguém que dança o blues
e ouve Alberta Hunter
uma caçadora dos deuses
e que viveu em canções
e se desfez em rios de música
numa terceira dimensão
com uma tempestade de vinho , leite
e por certo também de amor.

O BLUES E UMA GARGALHADA - PARTE III




PARTE III


"QUIERO VOLVER A LAS COMUNES COSAS; EL AGUA, EL PAM, EL CÁNTARO, UNAS ROSAS"

Jorge Luis Borges



Canto XXXV

O poeta vai para as ruas
e vê contradições no espelho do asfalto:
a falta de pão e carinho
o disco de ouro quebrado
além da reluzente pulseira da rainha
e carros vetustos que atropelam e matam
seres indefesos e sem imunidades.
O poeta não interfere no tráfego
não reordena o caos
não reclama dos motoristas
e nem joga com malícia:
ele pleiteia a liberdade dos pássaros
o vôo horizontal dos helicópteros
e preconiza a simples descoberta do Deus
a quem todos atribuem os erros
ou acertos circunstanciais.


Canto XXXVI




Há lirismo nesta avenida
que desce perpendicular ao rio
e que impassível chega ao mar
como o poema em linha reta,
concreto,
como o vestido, a blusa, o sapato
o colar de brilhantes e a sandália da pecador
que impune faz travessuras e artes
ataca árvores indefesas
chega sempre com surpresas
ou faz como o menino que brinca indiferente
autista em imaginárias guerras nas estrelas
cercadas de cometas de gelo e gás.
Solo de guitarra.

Canto XXXVII


Renego,
a maldição do poeta
a turma da meota
a gang, a galera e a patota
deixando a velhice precoce
além dos cabelos gris
e tudo o que falta.
Ao poeta cabe tudo:
enganar à censura
arrombar as portas da felicidade
conquistar castelos indevidos
esquecer os mega e subprojetos
desprezando a régua e o marca-passo
as notícias banais do jornal
rádio ou tevê radioativa
brincando de esconde-esconde com a vida,
jogando como Dário peito de aço um projétil no espaço
sem passagem de ida ou volta.


Canto XXXVIII


Nem o interfone
e nem o liqüidificador
limitam o meu amor
nem liquidam a vontade de te ver
e te abraçar em cada manhã
assim como ontem, hoje e sempre.
Também quero dizer baixinho
coisas que ninguém ouça
para não acordar as crianças
e possa me perder em tuas entranhas
possessivo e dominador
como o senhor das escravas brancas.
Quero também alisar tua pele
os cabelos de cetim
e beijar infenso a tua boca
que se desfaz em magia e pecado.

Canto XXXIX

O silêncio invade a sala
e penetra circunspecto nas paredes brancas
vegetais, mudas, surdas
impenetráveis e sem arestas
enquanto o poeta desdenha programas
e faz metáforas de brincadeira
entre espirais de fumaça
além de quadros anímicos que vigiam a porta
saem indóceis pelo corredor
desvencilhando-se sem selas ou amarras
anunciando o caos
e a reinvenção da vida.


Canto XL

O coração do sargento Pipers continua
solitário e aprisionado entre paredes de chumbo,
além das brancas nuvens de fumaça
o pó do sapato
o gosto de areia na estrada
e o olhar onipresente do mágico
que a tudo percebe :
o vinho sobre a mesa
servido em taças de gelo
e com cristais entre os dedos.
Nada mudou em anos de nada
e o futuro é sempre o sonho do amanhã
imprevisto como o acidente
ou a guerra subterrânea e apócrifa
onde tudo é possível
inclusive o gesto obsceno
o uso da bazuca
ou o suicídio singular
previsto no código de guerra nuclear.





Canto XLI


O grito ecoa além das pedras
e voa entre despenhadeiros abruptos
além das incertezas e da monotonia de cada dia.
Ele emerge como náufrago
dos estranhos subterrâneos e dos esgotos
onde impera a tortura
e o silêncio de impertinentes ataduras
que acima do bem e do mal
prescinde dos julgamentos e da lógica
além da alternativa do inseto que navega entre
pétalas
como uma astronave perdida no espaço
numa rota incerta e absurda
desfazendo-se em artes e manhas.


Canto XLII

Os versos
não têm porto certo e nem navios infinitos
mas viajam além deste mar
e do horizonte tristemente cinza
sem horizontes ou referências abstratas.
Eles prescindem dos astronautas e das noites
que atravessam a selva sem lua
e adentram impertinentes na sala vestindo ouro
prata e com cheiro incenso
outras vezes se despem da riqueza
ganhando as ruas num carnaval de delírios
e em cores indecifradas
deixam o gosto de uva na boca vazia do povo.


Canto XLIII

O poeta descartou o talão de cheques
a conta meramente bancária
e quebrou os elos e os cartões que tomavam a mesa.
Também matou pesadelos
e os sonhos paranóicos
além do medo da pura perseguição
e adentrou numa outra roda
o círculo de fogo
que segue os caminhos dos astros
aqueles loucos e sem destino
que vigiam a terra, o céu e o mar
entre parênteses de indiferença.

Canto XLIV

Quero reinventar a paz
os horizontes e os muros
esquecendo as crianças mortas nas esquinas
e as portas que se fecham sobre o passeio
além dos seres onívoros que cruzam a praça
e devoram com os dentes do caos
as plantas e os corações.
Quero também reinventar o amor
sem palavras e sem convenções
sem gestos canibais
que se arvoram em jantas e emoções tropicais.
E,
no somatório da vida
abater os lucros e perdas
para numa contabilidade aproximada
recalcular a própria vida
e os restos inevitáveis a pagar.


Canto XLV

O poeta não inventou o amor
e nem esta vida que se dissipa em fumaça
ou em palavras que voam além da casa
e sem paraquedas
passando como a brisa casual além da janela
e caem sobre os cílios postiços da madame
que viaja de avião e navega além deste planeta.
O poeta desistiu de quase tudo
só não prescindiu da vida
e dos sonhos que chegam noturnos
em cavalos alados
ou em comboios da loucura
evolando no suspiro frio da madrugada
e na revoada dos pássaros obscuros.


Canto XLVI

O cometa emergiu das sombras
e numa manobra abstrata
se revelou com malícia e incerteza na ponta dos
dedos
evocando o mistério do jogo de dados.
O cometa não tem ciência
nem ficções noturnas
não fixa as imagens femininas na retina
nem vê o retrato da menina que se esconde
além da trama do tabuleiro de xadrez.
O cometa não tem medo e alma no seu bojo
mostrando supérfluo sua lustrosa cabeleira inata
como plumas engomadas em gelo e lama
e que se iluminam além do vácuo
mostrando um peito cheio de chamas
e com desconfios rudes no olhar.

Canto XLVII

Dispenso as malas circunstanciais
e assumo a viagem isento de lamentos
sem medo dos pacotes fronteiriços da loucura
e assim, oculto aos olhos o imprevisto objeto
ou o projeto pessoal de atravessar a sala,
abro as portas indecisas da casa
e sobrepujo a avenida tripulada por dinossauros.
Para a viagem
fecho os olhos do silêncio
e desfaço a cama e os sonhos
entre cortes cinematográficos de poesia e ilusão
acreditando no flashback
e no roteiro antecipado.

Canto XLVIII


Há flores caretas nas lapelas
e nos supostos túmulos de mortos sem
nome ou sepultura
que jazem sem cruzes
no mais pleno anonimato.
Eles evanesceram entre sombras
num devaneio sem subterfúgios
provando a ausência da proteção e de
Zeus
que passeava no paraíso
enquanto os anjos da ditadura semeavam
a impossibilidade
fantasiados de ton-tons macoutes
e exalavam na névoa,
mero ritual vodu.





Canto XLIX

Entre o riso do bobo da corte
e a gargalhada do bêbado
fica o hiato
além da tristeza do blues que sai da vitrola
e vaza, volátil pela janela
ganhando praças e árvores inesperadas
isentas do vômito que cai do passeio
e gruda viscoso no asfalto
indiferente ao acidente de tráfego
ou ao crime passional.
Ao mesmo tempo
o rio desce sobre as pedras
com lágrimas disformes de barro e lama
sem informar a previsão do tempo
nem o ciclo das chuvas e do vento.

Canto L

Edgard Allan Poe
tinha um corvo de delírios etílicos
que não o impedia de fazer poesias
nem castrava os sonhos alucinados
nem os mergulhos escatológicos
além dos mistérios e dos monstros puramente
imaginários
que deslizavam diáfanos na noite turbulenta
numa gestação sem parto e sem inseminação,
mas há um duende inútil na esquina
e o olho azul da menina
que se desloca até o oceano
entre miragens de areia e de gelo
com a sua tristeza de sempre
e sempre a certeza do não retorno
tudo acasos e nunca mais.

Canto LI

No inverno suprimirei os cobertores
e as casacas obscuras e sangrentas dos cossacos
artificiais e solenes como a estaca no coração
vampiro sem coração.
Também não necessitarei daqueles dinossauros
e de toda a fauna prediluviana para
garantir uma proteção contra a incerteza e a geada.
No inverno todo o cuidado é pouco
como pouco e vário é
o descuido do teu olhar
que cruza ágil e e sutil com o meu
indecifrado
mudo
em fuga bachiana no fog da província grapiúna
ou na neve absoluta que cai do outro mundo.

Canto LII

A mulher vestiu a sua fantasia de rainha
e saiu
exibindo toda a sua ternura nua pelas ruas
praças e avenidas inutilmente paralelas
que se abrem em despidos vértices
até o âmago desta cidade.
Ela prescinde da coroa anárquica do reis
e das glórias palacianas
com seus corredores de intrigas
agitos crepusculares
mostrando total a cabeça, tronco e membros
fogos de artifício
e luzes imensas na porta do hospício.


Canto LIII

Sabedor das artes e manhas o poeta redescobre
as ruas e esquinas provisórias
onde as tatuagens passeiam entre sombras
ou se escondem do canto do juriti
e do ronronar das sirenes das fábricas
que se confundem com os carros da polícia
inibindo os olhos e a malícia
avisando o momento propício da fuga
ou escondendo a arma que se aluga
sumindo após o caos acontecido
tudo sem nenhum mistério aparente.


Canto LIV

O mágico parece um poeta de gravata borboleta
que faz acobracias indizíveis
através de gestos escatológicos
ou de meras e simples bravatas
quando arisco, opera sem risco
o milagre dos coelhos na cartola
e faz aparecer misteriosos lenços da china
abrindo o riso e o encanto da menina
que não percebe o ocaso das constelações austrais
desfeitas em nuvens e névoas
muito além do pulo do gato
e de qualquer outra arte e ofício.

Canto LV

Estas mãos vazias se estendem sobre a mesa
casuais e diáfanas
desprezam o gatilho inoportuno
e as balas que adornam o coldre
em cenas imprevistas de terror
porque a violência é obtusa
e bate sempre tonta nos dois lados da rua.
Mas,
estas mãos vazias se estreitam contritas no teu corpo
como piano de amor e brisa
a mesma que castiga o teu cabelo ao vento
num mundo sem bandeiras
pistas e pouso:
comovida miragem de água e sal
que se desmancha em delícias
ou prazeres eventualmente carnais
construindo uma paz artesanal.